Cortando arte

Bruno Taurinho
3 min readAug 11, 2017

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Quando alguém odeia um óleo sobre tela

‘Who’s Afraid of Red, Yellow and Blue III’ (Stedelijk Museum)

No dia 21 de março de 1986, um homem alto de cabelos castanhos entrou no museu Stedelijk, no sul de Amsterdã, portando um estilete. Ele caminhou até Who’s Afraid of Red, Yellow and Blue III, um óleo sobre tela de 2,24 metros de altura por 5,44 metros de largura, pintado pelo expressionista abstrato americano Barnett Newman em 1967, e o cortou repetidas vezes, até ser interrompido pela segurança do museu.

Era o holandês Gerard Jan van Bladeren, de 31 anos, um pintor amador, que, em seu julgamento, afirmou que cortou a pintura como um ode ao realismo mágico de um pintor que ele considerava mais importante, o holandês Carel Willink, e foi sentenciado a oito meses de prisão, além de seis meses sem poder visitar museus.

Enquanto isso o gigantesco quadro de Newman ficou exposto até a direção do Stedelijk decidir o que fazer com a obra danificada. Optaram por contratar o restaurador nova iorquino Daniel Goldreyer, que cobrou 400 mil dólares (mais do que a restauração de um Rembrandt da mesma época) e só devolveu Who’s Afraid of Red, Yellow and Blue III para o museu em 1991.

‘Who’s Afraid of Red, Yellow and Blue III’, danificada (ANP)

A restauração causou ainda mais controvérsia, com alguns críticos afirmando que a obra foi destruída duas vezes: primeiro pelo estilete de Bladeren, depois pela restauração de Goldreyer, que utilizou um rolo no lugar de um pincel e tinta acrílica em um quadro originalmente pintado com tinta a óleo. O que se seguiu foi uma série de ações judiciais, acordos e novas restaurações. O custo do estrago passou de 1 milhão de dólares e a pintura só foi exposta novamente em 2014.

Aos olhos de um leigo, Who’s Afraid of Red, Yellow and Blue III é um quadro simples (exceto, talvez, pelo tamanho), com um campo monocromático em vermelho, uma pequena tira azul do lado esquerdo e uma tira amarela, ainda menor, do lado direito. Além disso, o expressionismo abstrato sempre foi controverso, mesmo com Jackson Pollock e Arshile Gorky. Então, quando o Stedelijk, um museu público, comprou o quadro de Barnett Newman, vários críticos protestaram o valor estético daquela obra, que passou a ocupar espaço demais em um dos principais museus de Amsterdã.

Muitos, ao tentarem entender porque Bladeren atacou a obra, culparam justamente a controvérsia sobre o trabalho de Newman. Nem as referências a Mondrian e ao movimento De Stijl foram suficientes para que se chegasse há um consenso sobre Who’s Afraid of Red, Yellow and Blue III. Mas no caso de Bladeren, tudo indica que foi apenas uma questão de ódio.

Porque ninguém precisa dar meia centena de facadas em outra pessoa para matá-la. Mas não é raro isso acontecer. Isso significa que, para o assassino, mais importante do que a morte daquela pessoa, é a morte da ideia que sua existência representa. Ele quer destruir algo mais, causar um estrago irreparável, confrontar a máxima de que ideias são imortais.

‘Cathedra’ (Stedelijk Museum)

E foi por isso que exatos 11 anos e seis meses depois, às 11 horas da manhã, um homem alto, agora de cabelos grisalhos, entrou despercebido no Stedelijk, subiu até o segundo andar, parou na frente de Cathedra, outro óleo sobre tela gigantesco de Newman, e esperou até ninguém mais estar por perto. Então, depois de observar por um tempo aquele quadro azul cobalto com apenas uma tira branca no meio, Bladeren sacou seu estilete e cortou, repetidas vezes, outro expressionista abstrato, um de 12 milhões de dólares.

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Bruno Taurinho

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