Memórias de outros

Bruno Taurinho
2 min readFeb 18, 2022

FLAVIANO

Naquele dia o anfiteatro já parecia cheio demais durante a veação, porque era o dia dos leões. Os portões de ferro se abriram logo cedo e aquelas belas bestas cabeludas subiram as escadas rugindo, morrendo de fome. Mas se depararam com caçadores treinados que, acostumados a percorrer com suas sandálias a terra batida daquele circo, estavam prontos para matá-las. E faziam isso aos montes, que chegava até a ser chato. Foi por isso que, quando a noite chegou, o anfiteatro ficou ainda mais cheio. Porque todo mundo sabia que, mesmo que os caçadores matassem centenas de leões, outras centenas haviam passado o dia esperando sua vez naqueles corredores de travertino e concreto. Também morrendo de fome, mas com menos pressa, os novos caçadores treinados, acostumados a percorrer com suas patas a terra batida daquele circo, subiam as escadas do anfiteatro e devoraram centenas de romanos condenados sob a luz de tochas de fogo e o olhar do imperador.

1509

Francisco me contou que na manhã do dia 3 de fevereiro acordou pensando na carta que havia enviado a Malik no dia anterior, avisando que estava chegando a Diu para tomar a cidade portuária de seu sultão e torná-la parte do Império Português. Olhou pela janela da cabine do Flor do Mar, viu o sol forte, coisa rara numa manhã do inverno indiano, e pensou que sua superstição havia se concretizado. Afinal, ele não precisava ter avisado o sujeito que matou seu filho Lourenço, lá em Chaul, que estava indo se vingar, mas a boa ação é que trouxe todo aquele calor e claridade para poder bombardear os barcos mamelucos, indianos e até os venezianos - que ele nem sabia porque estavam ali, mas não importava. A cortesia de sua carta é que ia garantir que quem aparecesse no caminho da frota comandada pelo Flor do Mar estaria logo no fundo do Oceano Índico e, antes do dia 3 de fevereiro acabar, a cidade de Diu seria sua. Quer dizer, de Dom Manuel.

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Bruno Taurinho

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